quinta-feira

A formação do escritor

Marina Colasanti, mulher chique e de veste elegante, afirmou (no programa Sempre um Papo) que escrever é a sua profissão. Como tal, se Marina não programar o trabalho, sua obra literária com mais de 40 livros, e de diversos gêneros, perde-se em si mesma. É que, no Brasil, os editores não fazem cobrar escritores para entrega de originais. No contra-ponto, Marcelino Freire deixou marca no seu blog eraOdito. Lá pelas tantas disse que um livro publicado a cada 3 anos não o colocava numa situação confortável como escritor. É preciso se dedicar mais. No complemento: embora não estejamos acostumados com a idéia, um escritor não precisa ser um jornalista, ou um professor, ou um advogado, ou outra coisa qualquer com emprego formal, um médico, um servidor público, um psicanalista e por aí vai.

Se existe um mercado editorial, por mais falho que possa ser, existe a possibilidade de se viver de escrever. É preciso encarar o ofício como outro qualquer que coloca arroz-feijão na mesa, bater metas, cumprir objetivos e deixar um pouco de lado a visão romântica de que faz literatura só no enlaço da inspiração. Neste ponto sei que alguém irá questionar, na ponta da ironia e do preconceito: existe literatura e existe literatura. Insisto em dizer que literatura é literatura, seja ela de agrado ou não, seja ela boa ou ruim, seja ela engajada, de resistência, transformista, esquerdista, direitista, evangelista, feminista, judaica, mongol, africana, portuguesa, latina, americana, etc, etc, etc. E qualquer pessoa pode fazê-la.

Repito: qualquer pessoa pode fazer literatura e bem lá no fundinho todo mundo tem alguma coisa pra contar de um jeito especial, todo mundo tem uma crítica afiada, todo mundo tem um olhar cotidiano, todo mundo um monte de coisa mas nem todo mundo é alfabetizado. É preciso esforços que configurem mudanças, que ofereça acesso à leitura, isso para que, então, uma nova geração de leitores se sinta instigada a fazer própria literatura. Já disse uma vez e repito, quando confirmam existir esta ou aquela literatura, há um endeusamento, e quando os livros ficam trancados em bibliotecas elegantes e intocáveis, e quanto mais disso existir, mais distante a população ficará de qualquer literatura.

Nesta confluência, quem conta aumenta um conto e quem quer ser um escritor faz formação? No sul se montou um curso de graduação e a idéia ganha ares país afora. Mas é preciso uma formação formal para o ofício de escrever? É preciso aprender a colocar as frases daquele jeito que dizem, e falam, e classificam, e ganham concursos? É preciso sempre se fazer literatura engajada, ou literatura fantástica, dizer que Paulo Coelho não faz literatura? Que isso, que aquilo outro? Que os críticos... que os ensaístas... que os cronistas... que os contistas... que eles isso tudo ou aquilo outro? Que o bom mesmo é ser romancista, o gênero dos reconhecidos? Pacotes, pacotes e mais pacotes.

Tá, não se pode negar, estar a par do mundo literário, ler essa ou aquela obra de referência, saber das novidades, ler os lançamentos e abraçar o mundo dos críticos faz parte da engrenagem e faz a roda girar. Mas formação, assim, formal, é preciso? Diploma, certificados, que garantias dão? Eu, cá com meus botões digitais e sempre apoiando as iniciativas em rede digo logo das outras formas. E elas existem. Vou dizer de algumas.

Memórias da Literatura. Uma boa dica pra quem quer fazer uma formação informal para ganhar tarimba pro mundo literário é acompanhar os podcasts que são produzidos pelo Museu da Pessoa e disponibilizados na web. Uma união entre Brasil e Portugal. Tem João Gilberto Noll, tem José Mindlin e tem, para continuar exemplos, Fernando Bonassi, Moacyr Scliar e Nelida Piñon no eterno debate “Como Nasce um Escritor?”. Por aí vai, clique-se!

Os podcasts geralmente são programas com um formato leve, como se fossem ondas de rádio. E nessa via web, é possível encontrar o Perfil Literário, programa de rádio da Universidade Estadual Paulista. Lá também tem um bom caldo. Tem Cristovão Tezza, tem Milton Hatoum, Marisa Lajolo, Andrea Del Fuego, Marçal Aquino, Xico Sá, Moacyr Scliar, Ignácio de Loyola Brandão e Tatiana Belink para dizer de alguns.

Outra dica é fuçar os arquivos do programa Sempre um Papo, já mencionado acima. Mas se a onda é ver essa gente pessoalmente, como sugestão do meu amigo e poeta Guilherme Salla, além dos festivais de literatura se proliferando ainda-bem-país-adentro, o SESC está aí oferecendo muitas rodas de leituras e muitas oportunidades de encontrar pessoas, fazer contatos, trilhar os rumos da literatura, com palestras e oficinas. E por falar em Oficinas Culturais, a dica para quem está no Estado de São Paulo é acessar a página da Associação Amigos das Oficinas Culturais e se inscrever.

Quem está na capital conta com as atividades na Casa Mário de Andrade, literalmente, com bem anotou Carlos Drummond de Andrade: “Aqui [casa de Mário de Andrade] tudo se acumulou. Esta é a Rua Lopes Chaves, 546, outrora 108”. É na antiga casa do escritor que funciona, desde agosto de 1990, a Oficina da Palavra, cuja programação é voltada para o texto e para a literatura. Os projetos incluem o estudo e a criação de diversos gêneros literários (conto, romance, poesia e dramaturgia), jornalismo, crítica, interpretação de textos e redação, somados a palestras, ciclos de depoimentos de escritores, leituras dramáticas, recitais, mostras de filmes e lançamentos de livros, bem como atividades correlatas como, por exemplo, ilustração e encadernação. Entre os nomes que já passaram pela programação da Oficina da Palavra estão Marcos Rey, Lygia Fagundes Telles, Ivan Ângelo, José Simão, Caio Fernando Abreu, João Silvério Trevisan, Ruth Rocha, João Cabral de Melo Neto, Ignácio de Loyola Brandão e Renata Pallotini, entre muitos outros.

Saiba mais sobre a Oficina da Palavra na Casa Mário de Andrade:
Entrevista: Rosa Camargo Artigas
Cargo: Coordenadora Geral da Oficina da Palavra – Casa Mário de Andrade.
Como funciona a Oficina da Palavra? Há cursos palestras, apresentações, saraus?
A Oficina da Palavra é uma unidade da rede de Oficinas Culturais da Secretaria da Cultura, do Governo do Estado de São Paulo. No entanto, ela se diferencia um pouco das outras unidades porque ela é vocacionada para a área de literatura, produção crítica e texto. Ou seja, tudo aquilo que abrange a palavra escrita ou falada. A nossa programação varia a cada semestre, com diferentes coordenadores de atividades e temas abordados.. Os formatos são compostos, em geral, por oficinas, ciclos de debates, cursos, palestras e leituras dramáticas nas áreas de literatura, poesia, dramaturgia, roteiro para cinema e vídeo, crítica, história, etc.

Toda programação é gratuita?
Toda a programação é gratuita para o público, mas é sempre bom lembrar que as atividades ( os professores, a infraestrutura da casa, os funcionários, equipamentos etc) são pagas com verbas públicas, portanto com os impostos pagos pelos cidadãos. Por isso há uma responsabilidade muito grande dos dois lados: de nós que montamos a programação e procuramos o máximo de qualidade no atendimento do público, e dos freqüentadores que têm o compromisso de respeitarem os professores, a infra-estrutura da casa, os horários, a freqüência.

Quem pode participar? Como se inscrever?
Qualquer pessoa pode se inscrever e participar dentro do que cada projeto propõe: faixa etária para o qual ele é dirigido, pré-requisitos de cada proposta. As inscrições podem ser feitas por e-mail ou pessoalmente na Oficina, no horário de funcionamento da administração que é das 12:00 às 20:00.

A casa é tombada?
A casa foi tombada pelo CONDEPHAAT (órgão estadual de tombamento) em 1976. Inicialmente foi alugada pelos familiares para a Escola de Teatro Macunaíma. Antes, em 1968, o acervo de obras de arte, a biblioteca e os documentos pertencentes a Mário de Andrade foram transferidos para a Universidade de São Paulo, formando o acervo inicial do atual Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). A casa passou para o Estado em 1983, funcionando inicialmente como Casa de Cultura. Mais tarde, em 1990, passou a pertencer à rede de Oficinas do Estado.

Em que período Mário de Andrade morou na casa?
A família de Mário de Andrade adquiriu as três casas geminadas da Rua Lopes Chaves em 1921. Mário viveu na casa até sua morte, em 25 de fevereiro de 1945.

Nessa época já aconteciam encontros?
Segundo testemunhos, a casa era um ponto de encontro de intelectuais modernistas. Muitas das reuniões de preparação da Semana de Arte Moderna de 1922 aconteceram nesse espaço. Mais tarde, outras gerações de artistas e intelectuais freqüentaram a casa: escritores, poetas, arquitetos, artistas, historiadores como Antonio Cândido, Sergio Milliet, Lourival Gomes Machado, Paulo Duarte, Luis Saia, Oneyda Alvarenga, entre outros.

Existe algum espaço preservado dessa época?
Somente as estantes e uma conversadeira, fixas nas paredes, permanecem na casa. Há também um velho piano no qual, segundo contam, Mário de Andrade dava aulas. Tudo o mais está guardado e disponível para consulta pública no IEB. A casa, é bom lembrar, não foi tombada por seu valor arquitetônico e sim pela memória de seu ilustre morador.

Há uma poesia em que Mário fala da casa, não? Como ela se chama? A senhora sabe se ele a fez como um “testamento” para o uso do imóvel?
Há vários poemas de Mário de Andrade falando da casa da Rua Lopes Chaves. Não há, no entanto, nada que comprove que eles possam ter um caráter de testamento, expressão de uma vontade do poeta. Num desses poemas, inclusive, Mário pede para ser ignorado (“Mamãe, me dá essa lua... Ser esquecido e ignorado como esses nomes de rua”). No entanto, acho que manter a casa, utilizá-la para fins culturais, cuidar da memória de Mário de Andrade - e de outros artistas - é uma tarefa de todo e qualquer cidadão que respeite e acredite na importância desse grande intelectual para a cultura brasileira. Essa questão devia, inclusive, se estender para outras casas ou espaços das cidades brasileiras que são testemunho de importantes períodos da nossa história.